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Já o escrevi, mas repito-o: enchi a vida de palavras. Na tentativa de as perfilar com honra e na presunção de ser emissário de algumas verdades. Nunca as palavras, para mim, foram exercícios de futilidade, ou perversos jogos de ocultação.

baptista-bastos“Não há machado que corte/a raiz do pensamento”, cantou, num belíssimo poema, o grande poeta Carlos de Oliveira. A história da repressão da livre ideia e a batalha pela liberdade são comuns porque ambas correspondem não só a momentos da História como à força incomensurável de quem resiste. E, como diz outro grande poeta, Manuel Alegre, “há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz não.” Não me espanta muito que sempre houve, e haverá, biltres dispostos a obedecer às ordens do suserano, e a fazer a porcaria de quem está na sombra.
A palavra sempre foi perigosa e o uso dela por homens livres pode causar a morte. A época sombria em que vivemos tem revelado o impudor de uns, a canalhice de outros e, também, o destemor e a grandeza dos que amam a liberdade. Sei do que falo, por factos alheios e por experiência própria. Mas já tenho idade suficiente para me atemorizar. Um dia, há muitos anos, era eu tira-picos n’O Século, um dos que mandava pelo patrão gritou comigo. O gritador era uma criatura temível pelo medo que inspirava, como voz do dono. Só me gritou daquela vez. Eu tinha um metro e oitenta e três, fora educado nas ruas de Lisboa, que ensinam códigos e impõem regras de conduta, e era muito brigão. Virei-me para o tunante, estiquei-me ainda mais e berrei-lhe: “Nunca mais me trata assim! Não me assusta, não me intimida e não prova que tem razão!”
Já o escrevi, mas repito-o: enchi a vida de palavras. Na tentativa de as perfilar com honra e na presunção de ser emissário de algumas verdades. Nunca as palavras, para mim, foram exercícios de futilidade, ou perversos jogos de ocultação. Também elas me ensinaram a vigiar o meu próprio arbítrio, e me levaram a compreender que a sua beleza interior, o significado oculto dos seus étimos constituíam o corpo do seu poder subversivo.
Pago por isso um preço que me dá gosto. Já me sanearam várias vezes, não me amedrontaram nunca. Mas a verdade é que, ainda hoje, há homens capazes e dispostos a enfiar o tabardo de carrascos, e a proceder de um modo que julgava removido da vida portuguesa.
Mas, com esta idade antiga, com uma carga de anos a batucar teclas e a produzir prosa, entre tropeços, quedas e ascensões, assombros e desgostos, as palavras e a força que distilam continuam a fascinar-me. Porque só elas me aproximam do homem, e da consciência da sua imperfeita grandeza. Porque só elas exigem que delas se sirvam aqueles cuja ética os impede de ser cúmplices da injustiça, da intolerância, da exploração, da ganância e da indiferença. Pertenço a uma cultura, a uma época e a uma geração que castigava os prevaricadores com a marca do desprezo. Há dias, a propósito de um episódio de que fui protagonista, um velho e querido amigo, João Paulo de Oliveira, do melhor que a nossa Imprensa possui, enviou-me um comovente e generoso “e-mail”, de estímulo, conforto e amparo. Outro camarada, e muitos mais, do tempo em que um canalha era um canalha, e sofria a punição moral de quem era um justo, telefonou-me, por duas vezes, preocupado com o meu estado de espírito. É o António Rêgo Chaves, assim como o Mário Zambujal, com as palavras que se gosta de ouvir, porque são um estímulo contra a infâmia.
Os tempos são outros, ouve-se por aí dizer; são outros porque assim o queremos. Quando um Ministério por inteiro mente, omite, aldraba, fere o corpo de uma nação, e sustenta e anima comissários políticos, então, há muito de errado a corrigir e muito de imoral a erradicar.
Claro que nem tudo decorre da indiferença. Mas é da indiferença que, amiúde, nasce a indignação e surge a revolta. Quanto a mim, continuo a usar as palavras, a amá-las e a respeitá-las porque são seres indomáveis que nos ajudam a suportar o insuportável.
Negócios
10 Outubro 2014, 10:23
por Baptista Bastos | b.bastos@netcabo.pt
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